Reynaldo Aragon Gonçalves discute como a polarização se instrumentaliza no debate sobre vacina nas redes sociais, saindo de uma questão técnica e científica para um debate predominantemente político.
Artigo de opinião publicado originalmente no DCM.
“…QUANDO É NECESSÁRIO, GRUPOS OBSCURANTISTAS TRADICIONALMENTE NEGACIONISTAS SE APROPRIAM DO DISCURSO CIENTÍFICO PARA ARGUMENTAR A FAVOR DOS SEUS INTERESSES POLÍTICOS”.
O debate em torno da vacina Sputnik V e a Anvisa ganhou ares de guerra nas redes e mídias sociais, ecoando as mais diversas narrativas que, em seu conjunto, construíram um cenário de absoluta desordem informativa.
No debate nas redes, o que estava em jogo, dentro de uma disputa entre dois atores do campo científico, eram valores políticos e ideológicos e não a ciência. Não à toa, o perfil oficial no Twitter da Sputnik V ganhou milhares de novos seguidores nos últimos dias, tendo seus tweets grande engajamento nas redes, assim como perfil oficial da Anvisa.
No jogo narrativo das redes o que estava em disputa não eram os dados relacionados à vacina e sim instituições como a ciência, a saúde pública e a política, de forma objetiva, todas aparelhadas pelos discursos ideológicos que circulavam nas redes.
No dia 27, quando o debate chegou ao auge com a data estipulada pelo STF para que a Anvisa se posicionasse sobre o assunto, o tema chegou aos trending topics, colocando a disputa no centro do debate político no Brasil, mobilizando mídias e perfis das mais variadas esferas ideológicas.
O debate, como de esperado, circulou em torno dos aspectos políticos, tanto entre os setores do campo progressista quanto nas redes mais ligadas à extrema-direita, desta forma polarizando politicamente a matéria.
As redes ligadas ao campo progressista engajaram narrativas de crítica à Anvisa, ao aparelhamento da instituição pelos interesses políticos do governo federal e polêmicas sobre a liberação recente de agrotóxicos, proibidos em quase todo o mundo, por parte da agência.
Redes ligadas à extrema-direita focaram suas narrativas em torno da politização do STF em estipular prazos para que a Anvisa apresentasse em regime de urgência o laudo técnico sobre a vacina Sputnik V. O mais interessante é observar grupos que se utilizam do negacionismo como método de ação política, recorrerem à ciência para argumentar dentro do debate.
Dos pontos em que mais batiam, era o fato do ministro Lewandowski não ser médico e não ser cientista. Ou seja, quando é necessário, grupos obscurantistas tradicionalmente negacionistas se apropriam do discurso científico para argumentar a favor dos seus interesses políticos.
Dentro de um movimento oposto, atores do campo progressistas fizeram uma apropriação das questões políticas para contestar o veto supostamente científico da Anvisa à vacina russa. Quando coloco a palavra “supostamente” em meu argumento é para reforçar a ideia de que da mesma forma que o estudo clínico da Anvisa apontou indícios de adenovírus replicante, existem também fortes indícios de aparelhamento político da agência.
Um terceiro grupo, este dentro de um conjunto social mais amplo, transitando entre atores do campo progressista até a direita liberal, buscavam pautar suas narrativas em torno dos argumentos científicos envolvendo o Instituto Gamaleya e a Anvisa.
Neste grupo os argumentos partiam do princípio de que por mais que seja urgente a aquisição de novas vacinas e em grandes quantidades, era preciso antes resolver o entrave científico entre as instituições para a liberação.
Devemos nos preocupar quando a ciência é pautada de forma política, devemos nos ocupar de tratar o assunto da forma devida e com a seriedade que o tema merece ser abordado. A politização e os ataques à ciência no Brasil são mais um efeito colateral da quebra democrática e da crise institucional que vivenciamos na última década.
Assim como as demais instituições nacionais, a ciência passou a ser tratada como mais um instrumento político ideológico, utilizado por diversos setores, sejam eles obscurantistas, financeiros ou sociais para demarcar suas agendas dentro de uma realidade de absoluta quebra institucional.
A palavra aparelhamento nunca foi dita com tanto vigor nos últimos anos, seja aparelhamento político, ideológico ou aparelhamento financeiro, desta forma não fica difícil crer que hoje no Brasil o Estado de Direito respira por aparelhos. O aparelhamento político da ciência é um fato, um reflexo trágico de uma época onde a Universidade Pública e suas pesquisas sofreram com os maiores cortes orçamentários das últimas décadas, em meio à pior crise sanitária da história do país.
Para a ciência, é preciso o resgate do espaço da confiança junto à sociedade, sem deixar com isso de sermos críticos sobre o papel desempenhado por estas instituições na forma da política ideológica dentro da corrida pela vacinação. Se dentro deste cenário existem indícios de aparelhamento que afete uma decisão não por questões técnicas e sim ideológicas por parte de uma instituição científica, isso deve ser investigado.
No entanto, a negativa por parte da Anvisa em autorizar, nesse momento, a distribuição da Sputnik V em território nacional é dada por uma justificativa técnica, o que no campo da ciência só pode ser contraposto por outro laudo técnico. Para tal controvérsia as respostas tanto no campo científico quanto no campo político ideológico, serão respondidas através de uma solução técnica entre as partes envolvidas, desta forma colocando fim à polêmica.
O instituto de pesquisa Gamaleya segue argumentando que os dados solicitados foram entregues para a Anvisa e que a agência havia agido de forma política, sem realizar os estudos completos. Com o início da CPI do Genocídio o tema poderia ser levado ao senado para que as partes envolvidas debatam publicamente dentro da perspectiva da ciência, através dos métodos científicos necessários para que essa contenda seja resolvida da forma mais rápida possível.
Enquanto este entrave não é resolvido, já passamos de 400 mil mortes no Brasil por causa da Covid-19 com mais de 300 mil mortes por dia e ainda presenciando políticas públicas criminosas na condução da pandemia.
Os dados citados neste artigo sobre minhas opiniões são referentes ao estudo realizado pela Rede Conecta (UFF), com dados coletados do Twitter no dia 27 de abril e publicado originalmente no seguinte link.
Reynaldo Aragon Gonçalves Jornalista e doutorando em comunicação social pela Universidade Federal Fluminense.