Reynaldo Aragon Gonçalves, Thaiane Oliveira e Marcelo Alves analisam como a disputa discursiva em torno da Sputink e da Anvisa se desenrolou nas redes sociais, com foco no Twitter, diante do indeferimento da permissão do uso da vacina russa no Brasil.

Este estudo foi publicado originalmente no portal Brasil 247.

Análise de rede Sputnik V x Anvisa

“EM JOGO ESTAVAM A CIÊNCIA, A SAÚDE PÚBLICA E A POLÍTICA, EM MEIO A CONSTRUÇÕES NARRATIVAS E COMPARTILHAMENTO EM MASSA DE INFORMAÇÕES QUE SE MOSTRARAM CONFUSAS, ASSIM COMO OS PRÓPRIOS FATOS EXPOSTOS PELA CONTROVÉRSIA”.

Estudo de pesquisadores analisou 31.908 tuítes relacionados ao termo Sputnik V-BR na última terça-feira (27), dia em que a Anvisa indeferiu a permissão do uso da vacina russa no Brasil, e apresenta um mapa bastante complexo sobre as narrativas em torno do tema.

Nos últimos dias, as redes foram tomadas pelo debate sobre a disputa entre a Sputnik V e a Anvisa, expondo uma conjunção de fatores políticos e ideológicos que criaram uma atmosfera de confronto onde vários aspectos da institucionalidade foram colocados na mesa. Em jogo estavam a ciência, a saúde pública e a política, em meio a construções narrativas e compartilhamento em massa de informações que se mostraram confusas, assim como os próprios fatos expostos pela controvérsia.

O debate girou em torno principalmente dos aspectos políticos e científicos da decisão da Anvisa. Alguns setores próximos da esquerda defenderam que a negativa da agência era uma demonstração de aparelhamento político da instituição. Outro grupo, esse ligado à extrema-direita, buscou desqualificar a vacina pela sua origem e não pelas características técnicas. Um terceiro grupo, esse com um espectro ideológico mais amplo, transitando entre a esquerda e a direita liberal, levantaram as questões técnicas e institucionais envolvidas dentro do debate. 

Analisamos no dia 27 de abril, data em que foi indeferida pela Anvisa a permissão do uso da Sputnik V no Brasil, 31.908 tweets relacionados ao termo Sputnik V-BR que apresentou um mapa bastante complexo no que diz respeito às narrativas em torno do tema e seus aspectos político-ideológicos.

guerra das vacinas: Sputnik V x Anvisa

Na semana passada o Ministro Lewandowski havia pedido urgência à Anvisa no processo de permissão do uso da vacina Sputnik V no Brasil, pedido esse que causou alvoroço nas redes entre simpatizantes e críticos à vacina, desta forma politizando ainda mais o assunto.

Antes da decisão, o perfil do Twitter mais retuitado no dia 27 de abril, com quase 4 mil tweets, foi o da conta oficial da Sputnik-V no Brasil, postando uma série de tweets em que fazia a defesa da aprovação da vacina junto à Anvisa. Depois da decisão, o perfil voltou a tuitar, desta vez com tom mais enfático reforçando seu ponto de vista sobre os aspectos políticos da decisão por parte da agência. A partir deste movimento, quando o assunto já ganhara o interesse do público constando nos top trends do dia, perfis ligados a setores sociais e políticos distintos começaram a repercutir em suas redes a decisão da ANVISA.

guerra das vacinas sputnik e anvisa no twitter

Uma grande movimentação acontecia enquanto a polêmica crescia junto com os ataques que partiam de todos os lados, uns justificando a decisão da Anvisa e outros contestando a decisão, colocando-a no campo político.

vacinas russia e brasil
mapa de rede da guerra das vacinas no twitter

Área roxa do mapa – Pró-Sputnik V e a instrumentalização político-partidária da Anvisa

Entre os perfis de maior influência dentro desse grupo, encontramos atores pertencentes a uma esfera midiática e política do campo progressista. Por exemplo, observamos o deputado Rubens Otoni com influência na rede, além de mídias progressistas como Brasil 247, Carta Capital, Revista Fórum, entre outros, mobilizando um debate em torno do aparelhamento político da Anvisa. Entre os principais argumentos, observamos uma recorrência discursiva em defesa da Sputnik V e a interferência geopolítica dos Estados Unidos como pressão política sobre o Brasil para não aprovar a vacina russa.

Um outro argumento recorrente foi de que a exigência de documentação por parte da Anvisa ignora o fato de que a vacina já havia sido aprovada em 61 países e portanto, há um histórico que garante a validade da vacina russa. Circulou também documentos e informações de pesquisas de outros países apontando a segurança da vacina Sputnik V em comparação às demais vacinas.

Argumentam também que a Anvisa protagonizou a aprovação de agrotóxicos no país nos últimos dois anos, contrariando a recomendação de agências reguladoras de vigilância sanitária de vários países.

 Por fim, com um apelo mais emotivo, argumentam que, dado o contexto emergencial no país e o número de mortes crescente, há uma urgência de aprovar o quanto as vacinas.

Área verde do mapa – A defesa pela institucionalidade técnico-científica da Anvisa

Entre os atores de maior influência na rede, encontramos sujeitos com perfis que prezam pelo caráter técnico-científico da decisão da Anvisa, refletindo sobre as questões técnicas envolvendo a vacina, com poucas menções às questões políticas e geopolíticas na corrida pelas vacinas contra Covid-19. Reinaldo Azevedo, Daniel Dourado, Átila Iamarino, entre outros, são os perfis com maior influência na rede, gerando inúmeros retuítes sobre seus posicionamentos em relação à decisão da Anvisa. O discurso da transparência, da falta de dados, do rigor técnico-científico da agência e a preocupação sobre o adenovírus ativo estavam entre os principais argumentos presentes neste grupo. Constroem sua retórica em torno da importância da neutralidade científica, que é também uma forma de legitimar a autoridade científica.

Área laranja do mapa – Informações noticiosas

Protagonizados por veículos de mídia, principalmente os tradicionais corporativos, como CNN e Folha, o agrupamento traz informações em formato de notícias, sem posicionamentos, discussões e detalhes sobre o processo de rejeição da Anvisa sobre a vacina. Como a coleta de dados teve como base os últimos 7 dias (20 a 27 de abril de 2021), parte desses conteúdos refere-se ao veto do STF em estender o prazo para a Anvisa avaliar a importação da Sputnik (ocorrido no dia 26 de abril de 2021) e à rejeição da Anvisa em autorizar a Sputnik no país. Através de um modelo anglo-americano de produção de notícias, que usa um formato de objetividade, próprio do jornalismo tradicional brasileiro, as discussões traziam apenas fatos ocorridos nesse processo, sem aprofundar e explicar ao público as questões relacionadas ao processo junto ao STF e o veto da Anvisa. Além da CNN, destaca-se neste grupamento laranja o perfil “Corona Brasil” que também traz dados e informações sobre vacinas e tratamento contra Coronavírus no país.

Áreal azul do mapa – Contestações e acusações de politização do judiciário 

Próximo a um discurso de extrema-direita, os tuítes neste grupo se desdobram principalmente em torno de acusações sobre o Supremo Tribunal Federal de estar politizando o debate sobre a vacina, contestando a autoridade do judiciário em determinar prazos para a avaliação da vacina Sputnik. Validam seu argumento a partir da autoridade científica do corpo técnico da Anvisa, em contraposição ao STF. 

Percebe-se a predominância de um ecossistema midiático próprio da extrema-direita, acionado como referência entre os perfis deste grupo, como é o caso da Revista Oeste e Gazeta do Povo. Incertezas e controvérsias são valores frequentes acionados neste grupo. Por fim, observa-se também o surgimento de tweets que contestam a eficácia de outras vacinas, sobretudo, Coronavac.

isentoes
Essa conta estava suspensa em 29/04, quando subimos a matéria.

O objetivo desta análise é entender quais os caminhos que a informação percorre e quais as narrativas frequentes entre os grupos que disputam os espaços digitais, dentro de um mapa da informação sobre a questão da imunização e seus atores. Entendemos que em tempos de normalidade institucional, a politização e ideologização do tema vacinas não teria tanta relevância quanto tem nos dias atuais. Percebemos que as questões políticas estão no cerne do debate, assim como os processos de negação da ciência e da disputa epistêmica em torno do próprio ethos científico. Através de apropriações e ressignificações dos valores da ciência moderna ocidental, normatizados pelos preceitos iluministas, setores liberais, progressistas e conservadores pautam o debate utilizando das mais variadas ferramentas narrativas, para desta forma consolidar seus espaços de atuação política e ideológica. 

Uma das nossas maiores preocupações em tempos de crise institucional, política, sanitária e social é estar atento sempre para o fato de que por mais que existam críticas ao método e a forma como a ciência atua e se comunica com a realidade objetiva, é preciso resgatar o espaço da confiança junto à sociedade, sem deixar de ser crítico sobre o papel que estas instituições exercem e a conjuntura política e geopolítica em torno da corrida pela vacinação. Para isso, se existem indícios concretos de aparelhamento político e ideológico em instituições científicas, o debate sobre a instrumentalização político-partidária da ciência se torna alicerçante na construção dos caminhos da ciência para o futuro.

A justificativa da ANVISA para negar a Sputnik V no Brasil nesse momento é técnica. Por mais que possa haver influência política na decisão, o argumento é fruto de um estudo clínico. A Anvisa se encontra dentro de uma grande polêmica no campo político, é uma instituição séria e que deve ser preservada como patrimônio científico do país. No entanto, ainda que discutido em outros comitês que não os da análise de vacinas, não podemos tirar do debate uma atuação recorrente da instituição na liberação de defensivos químicos prejudiciais à saúde nos últimos anos, contrariando recomendações mundiais. Tais decisões desastrosas anteriores, contudo, não podem invalidar a decisão técnico-científica da Anvisa em relação à Sputnik V. Ainda, o instituto de pesquisa Gamaleya segue argumentando que os dados solicitados foram entregues para a Anvisa e que o principal argumento técnico da agência reguladora, de que foi encontrado adenovírus replicante, não foi de fato medido pela agência.

Em meio a disputas de narrativas, a população aguarda os desdobramentos do caso, enquanto mais de 3.000 vidas são perdidas diariamente no país e a vacinação avança vagarosamente. Seguimos, portanto, na defesa sobre a importância de seguirmos protocolos científicos e buscar as informações necessárias, tanto do laboratório Gamaleya quanto da Anvisa, para que esse entrave narrativo seja solucionado o quanto antes, sem instrumentalização político-partidária da ciência, da saúde e da nossa esperança. E só poderemos fazer isso seguindo protocolos e trazendo à tona os dados e fatos ocorridos no processo para o necessário debate público. A ver…

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