Reynaldo Aragon Gonçalves, Thaiane Oliveira, Marcelo Alves e Wanderley Anchieta analisam como a CPI da Covid-19 repercutiu nas redes sociais, buscando mostrar as diferenças discursivas em cada grupo identificado na coleta: progressistas, conservadores e liberais

Este estudo foi publicado originalmente no portal Brasil 247.

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“A ESTRATÉGIA DA INVERSÃO DA CULPA, NOTADAMENTE COSTUMEIRA NA COMUNICAÇÃO DO GOVERNO COM SUA BASE, AINDA DEMONSTRA FORÇA E CAPACIDADE DE MOBILIZAÇÃO E ENGAJAMENTO NAS REDES”

Estamos presenciando um período histórico que será marcado, nos próximos meses, pelo debate em torno da política e da ciência através da CPI da Covid, também conhecida como CPI do Genocidio, evento este que apresenta potencial para mudanças estruturais no país.

O debate proposto na CPI gira em torno de dois temas que vêm demandando especial atenção da sociedade civil nos últimos anos, em meio a uma notável crise institucional no Brasil, estando a política e a ciência no centro da controvérsia que envolve as políticas públicas de combate à pandemia no país. 

No momento em que passamos a marca de 430 mil vítimas fatais da Covid-19 no Brasil e sem perspectiva de melhora no cenário nem a curto nem a médio prazo, a ciência é colocada no centro do debate como a instituição deveras capaz de oferecer as respostas necessárias para tomadas de decisão em políticas públicas de saúde. 

Notadamente, a primeira semana da CPI da Covid-19 foi marcada por três temas centrais voltados à políticas públicas de saúde: o distanciamento social, o tratamento precoce – tendo como protagonista a cloroquina, e também a relação do governo Bolsonaro com as orientações científicas. 

Estes temas foram discutidos durante a oitiva dos ex-ministros da saúde Henrique Mandetta e Nelson Teich, além do atual ministro Marcelo Queiroga, quando tivemos como principal pauta a relação do ministério da saúde com o poder executivo e qual teria sido o nível de interferência do mesmo em temas especificamente técnicos.

cpi da covid 19 tuítes

O estudo

Analisamos dados  a partir das seguintes hashtags: #CPI, #CPIdaCovid, #CPIdoGenocidio, #CPIdaPandemia, #Mandetta, #MandettaGenocida, #Teich, #BolsonaroGenocida, #Queiroga, #Cloroquina, #Pazuello, #Pazuellocagão. Partimos de 327.240 tweets com coleta de dados no dia 10 de maio, relacionados ao tema CPI da Covid na primeira semana de trabalhos da comissão. 

Pudemos observar as reações das redes sobre o assunto e de qual forma  as mesmas se organizaram, discursivamente, dentro de seus campos políticos ideológicos de atuação. Nosso objetivo é compreender de que forma as redes vêm atuando no Twitter, buscando identificar atores e suas respectivas relações no entorno de seus campos de ação narrativa-ideológica.

cpi da covid 19 twitter

Repercussão do tuitaço

Na primeira semana da CPI, os depoimentos de Mandetta e Teich chamaram a atenção nas redes através da repercussão de políticos, jornalistas e influenciadores sobre as falas dos ex-ministros. Ambos se mostraram críticos à postura do governo federal durante seus mandatos e admitiram ter saído por não terem conseguido autonomia do Ministério da Saúde para promover ações públicas de combate à pandemia no período que eram ministros da pasta.

tuitaço cpi do genocídio

No caso do ex-ministro Henrique Mandetta, a oitiva mais polêmica da semana no que diz respeito aos ataques cruzados no campo político e também nas redes, duas foram as principais hashtags que antagonizavam o debate: #mandettagenocida e #bolsonarogenocida. A tag #bolsonarogenocida vem sendo utilizada há alguns meses nas redes sociais por grupos ligados ao campo progressista e liberal, como forma de denunciar as ações do governo no combate à crise sanitária, inclusive sendo utilizada como nome alternativo #CPIdogenocidio por esses grupos. Durante o depoimento de Henrique Mandetta e nos dias seguintes, grupos ligados a conservadores e políticos da extrema-direita lançaram #mandettagenocida em resposta aos grupos progressistas e liberais que, massificadas dentro de suas redes, conseguiram colocar nos trending topics a frente da sua hashtag concorrente com grande número de  utilização em tuítes.

cpi da covid mandetta bolsonaro contagem de hashtag

Incentivados pela conta pessoal no Twitter do próprio presidente da República, estas redes utilizam como método discursivo a construção de uma ideia de que no período em que Mandetta era ministro, no princípio da pandemia, o médico teria defendido que a população, ao ter algum tipo de sintoma, não deveria procurar de forma imediata os serviços de saúde.

Ao utilizar de sua força nas redes, Bolsonaro é eficiente para engajar boa parte da sua base dentro de uma narrativa construída a partir de uma inversão dos valores, assim como dos fatos relacionados à sua administração da pandemia como chefe do poder executivo nacional. O debate em torno da CPI tem como alvo as políticas públicas voltadas à pandemia, ou a falta delas, diz respeito aos dados relacionados à atuação do governo federal, em especial. A estratégia da inversão da culpa, notadamente costumeira na comunicação do governo com sua base, ainda demonstra força e capacidade de mobilização e engajamento nas redes. Sua retórica ganha força na polarização com setores progressistas liberais. O bolsonarismo, assim, faz das redes um campo de disputas políticas e epistêmicas que garantem uma narrativa de combates incessantes contra seus inimigos – desta forma sempre mantendo mobilizada sua rede de apoio.

Análise dos campos

Trabalhamos com categorias e subcategorias que envolvem as relações político-ideológicas dos principais atores que geram maior engajamento nas redes através das suas contas no Twitter. Após a coleta, foi feita a análise do discurso que se apresenta nas redes, identificando atores de influência e o comportamento dos campos através das narrativas, para entender as movimentações políticas nas redes sociais.

São elas: campo progressista, que é composto por setores à esquerda, centro-esquerda e alguns atores liberais que têm trânsito junto ao público mais à esquerda. Campo conservador: instituído por setores ligados à direita conservadora e à extrema-direita reacionária. Campo liberal: o campo liberal é mais amplo, nele estão adequados discursos de atores que transitam entre o campo progressista ao campo da direita liberal, normalmente apresentam narrativas menos ideológicas e pautadas pela tecnicidade do tema envolto na discussão. 

Na constituição do processo de análise dos discursos, estabelecemos quatro subcategorias de valores para organizar cada discurso em seus respectivos campos de ação dentro das redes e de suas zonas de influência. São elas: discursos emotivos, discursos político-ideológicos, discursos tecnocientíficos e discursos noticiosos. Nem toda coleta apresenta os campos de forma bem delineados, dependendo do assunto que está com maior engajamento nas redes, os campos se apresentam de formas diferentes, muitas das vezes polarizando o assunto em apenas dois campos bem definidos ou em mais grupos. No caso da análise sobre a primeira semana da CPI da Covid-19, os clusters demonstraram uma maior polarização, ficando delineados com maior ênfase os campos progressistas e o campo conservador. A cada semana e a cada oitiva na CPI, os assuntos mais comentados tendem a gerar reações diferentes em cada categoria pré-estabelecida no estudo, desta forma apresentando comportamentos diferentes a cada debate surgido no dia.

Cluster representando o campo progressista

campo progressista cpi da covid

Cluster representando o campo conservador

cluster conservador cpi da covid twitter

Sobre o campo progressista

Notamos que no campo progressista se encontram muitos discursos irônicos ou de humor. Identificamos também falas emotivas – como por exemplo em relação ao falecimento do ator Paulo Gustavo, vítima da doença, causando grande consternação junto à sociedade, o que foi representado nas redes por depoimentos e protestos de vários setores. As redes, geralmente sensíveis a eventos como estes, costumam reagir de forma proporcional à relevância  da informação, reverberando percepções sobre o ocorrido e, dessa maneira, mobilizando os debates.

Nesses tweets já vemos que o apelo mais emocional se entrelaça com consternações quanto à condução política do país em relação, por exemplo, a fraca atuação na aquisição de doses de vacinas e/ou do débil estímulo à produção das mesmas em solo nacional.

Temos, então, os tweets que tratam dos aspectos político-ideológicos: por exemplo, de que a CPI tem instigado a direita a reagir de modo mais incisivo. Ou se defendendo dos ataques ou reagindo com seus movimentos próprios como a hashtag #mandettagenocida, aqui também comentada.

Sobre o campo conservador

Observando as narrativas construídas pelo campo conservador, notamos um padrão de ataques a setores que buscam contrapor as políticas públicas promovidas pelo governo federal em relação à crise sanitária. A defesa do governo federal e ataques a políticos e personalidades ligadas ao campo progressista marcaram o tom das narrativas que buscavam desqualificar as críticas a Bolsonaro, culpando seus adversários pelos problemas relacionados à pandemia. As redes ligadas à extrema-direita mobilizaram forte engajamento através de respostas aos críticos da cloroquina e do tratamento precoce, reafirmando o padrão negacionista em relação à ciência e as determinações da OMS.

Discursos político-ideológico, com contestação sobre a CPI como instrumento político, também são observados neste grupamento.

Ainda temos os tweets que enfocam seus conteúdos em ataques pessoais, com ares de imensa agressividade, e uso de instrumentalização política partidária através de afrontas e agravos.

Campo amplo: atores que transitam entre os campo progressistas e liberal

Atores que neste momento prezaram por narrativas de caráter supostamente neutros, desta refletindo sobre as questões técnicas ou noticiosas, com poucas menções às questões políticas e geopolíticas relacionadas à CPI. Os tuítes, neste campo, buscam contrapor as ações do governo federal relacionadas à pandemia, baseados em informações e elementos técnicos, como o uso da cloroquina, o descaso com a compra de vacinas e a postura do presidente diante do caos social e na defesa da imunidade de rebanho.

Nesse grupamento de tuítes encontramos mensagens de caráter informativo, com um texto que não possui, necessariamente, colocações fortes sob forma de provocação (como vimos no campo anterior). Aqui, as frases mais duras estão, de alguma maneira, coligadas com a informação trazida – ainda que possam ser lidas de modo instrumentalizado.

Considerações finais

As redes sociais vêm seguindo um certo padrão que indica que a polarização política que antes apresentava o campo progressista em conflito direto com o campo conservador, agora abre espaço para que outros setores ideológicos da sociedade brasileira se juntem ao campo progressista na crítica aos setores de apoio ao bolsonarismo. As informações que chegam a todo o momento sobre a crise sanitária e a inação do governo na organização das instituições públicas favorecem um clima de consternação e revolta dentro da sociedade, apontando para um isolamento dos setores bolsonaristas. Como exposto nas últimas pesquisas de opinião publicadas nesta semana, por mais que o governo venha perdendo apoio de setores importantes da sociedade que antes serviam como base de apoio ao governo, o bolsonarismo continua contando com grande força no engajamento nas redes sociais, operando de forma eficiente os meios digitais e as ferramentas  semióticas que a internet oferece. A esquerda, campo ideológico mais próximo aos setores progressistas, marca grande presença nas redes ativa e combativa e, aos poucos, começa a conquistar espaços que antes eram dominados por redes conservadoras ligadas à extrema-direita. Porém, o caminho é longo e o tempo é curto. Com a proximidade das eleições em 2022 é preciso ampliar as redes de combate à desinformação e ao negacionismo, reunindo forças democráticas para que durante o período eleitoral as redes não funcionem como se fossem tribunais de exceção.

A CPI acontece num momento decisivo para a política e para o Estado de direito no Brasil, colocando no centro da discussão as instituições e a sociedade, sendo a ciência a instituição mediadora num cenário dramático de crise sanitária. Para nós pesquisadores debruçados sobre a problemática da desinformação e do negacionismo científico, a CPI se coloca num momento notável onde o próprio ethos científico é a todo momento colocado à prova por uma crise epistêmica visceral que acomete a sociedade brasileira. 

O objetivo da Rede Conecta, neste estudo desenvolvido pelo  Laboratório de Investigação em Ciência, Inovação, Tecnologia e Educação (Cite-Lab UFF) e pelo Laboratório de Mídia e Democracia (LAMIDE-UFF) é acompanhar como a CPI da Covid-19 repercute nas redes e de que forma essa repercussão nos ajuda a entender qual será o papel da internet nos próximos meses até o momento das eleições em 2022. 

Dados gerais sobre a pesquisa:

Coleta 10/05/2021 

Os estudos de rede sobre a CPI da Covid-19 serão publicados de forma periódica pelo portal Brasil 247 e pelo site do SCite-Lab.

Reynaldo Aragon Gonçalves – Doutorando em Comunicação do PPGCOM-UFF

Thaiane Oliveira – Professora em Comunicação do PPGCOM-UFF

Marcelo Alves – Doutor em Comunicação do PPGCOM-UFF 

Wanderley Anchieta – Doutor em Comunicação do PPGCOM-UFF 

Pesquisadores do CiteLab e Lamide e integrantes da rede Conecta, plataforma multidisciplinar de Inteligência Artificial e Educação Científica que está sendo desenvolvida com o apoio do Brasil 247.

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