Uso Político Da Wikipédia Coloca Em Risco A Própria Plataforma, Apontam Pesquisadores Da Rede Conecta, Que Combate Desinformação
Por Thaiane Moreira de Oliveira e Reynaldo Aragon Gonçalves
Artigo publicado originalmente no portal do Brasil 247.
A desinformação tem sido considerada um grande desafio para a atualidade e uma ameaça para a democracia, conforme apontado por diversas organizações internacionais, como a ONU e a OMS. O assunto tem ganhado força dentro de um contexto de excesso informacional, polarização e crise política presente não apenas na realidade brasileira, mas pelo mundo afora. Neste contexto, a busca por informações vindas de fontes confiáveis tem sido apontada como um dos caminhos para evitar que a desinformação cause estragos à saúde da população e à democracia. No entanto, a questão da confiança está ligada intimamente à autoridade, sobretudo a autoridade epistêmica, ou seja a autoridade para falar a verdade e apresentar fatos e informações que auxiliem o cidadão a entender mais sobre determinado assunto.
Há uma questão central para que possamos entender os mecanismos da circulação da desinformação: como são negociadas e estabelecidas as autoridades do conhecimento na sociedade? Durante muito tempo, essas autoridades foram construídas dentro de comunidades especializadas, que detinham o conhecimento especializado e podiam falar em nome da sociedade, produzindo evidências, disseminando informações e conhecimentos. Podemos citar a ciência, bem como o jornalismo, como exemplos de instituições epistêmicas que ocupavam esse papel de mediador dos interesses da sociedade na produção de conhecimento e disseminação de informação. A partir de estruturas sociais próprias e normas de produção de informação, se valem do princípio da neutralidade para produzir informações. De um lado, a ciência possui estruturas para garantir que as informações sejam validadas por pares. Por outro lado, o jornalismo brasileiro adotou o modelo anglo-americano de produção de notícias no qual a forma como se constrói a informação busca aparentar princípios de neutralidade, objetividade e imparcialidade. Ambos se valem de seus sistemas internos próprios para garantir, reforçar e manter a posição de autoridade do conhecimento legítima e digna de confiança.
Com a popularização da internet, a forma como passamos a nos comunicar alterou profundamente este modelo. Já não era mais necessário apenas um conjunto de atores para falar em nome da sociedade, mas a sociedade também passou a ocupar os espaços digitais para falar por ela mesma. Neste cenário, a Wikipédia surgiu como um exemplo desta reconfiguração da comunicação e da informação propiciada pela internet. Como espaço colaborativo, a Wikipédia possui dezenas de milhões de artigos em centenas de línguas e dialetos e é editada por milhares de colaboradores de todas as partes do mundo.
Assim como a ciência, a Wikipédia possui estruturas e normas internas robustas para identificar e corrigir uma informação errada. Durante seus primeiros anos de existência, a plataforma não era reconhecida como referência, sobretudo entre aqueles que detinham a legitimidade para falar em nome do conhecimento.
Cientistas, professores, jornalistas, entre outros, tinham a Wikipédia como uma fonte não-confiável onde qualquer um podia colocar o que quisesse ali. No entanto, foi um trabalho insistente de editores que mostrou que a Wikipédia poderia ser considerada uma plataforma capaz de prover conhecimento, justamente por possuir estruturas internas próprias que garantissem a qualidade da informação ali inserida. A cada nova inserção de informação na plataforma, as alterações são passadas pelo escrutínio de editores que assinalam quando uma informação inserida é confiável, se carece de embasamento ou se precisa ser excluída por promover inverdades ou desinformação. No entanto, assim como a ciência, a plataforma também não está isenta de disputas e isso ficou evidente nesta semana.
Diante de uma intensificação de debates políticos, e reconhecendo a importância da plataforma na busca de informações, a Wikipédia listou um conjunto de veículos de mídia que não podem ser utilizados como fontes de verbetes. Entre os veículos listados, está o Brasil 247, um dos exemplos de jornalismo do campo progressista que não se utiliza de um modelo anglo-americano de produção de notícias para fingir neutralidade. Considerar o 247, composto por um corpo de grandes jornalistas do país, como uma fonte não-confiável abre um conjunto de dúvidas sobre a decisão da plataforma e a instrumentalização do princípio da neutralidade, que sempre fora defendido pela mesma.
Esta instrumentalização do princípio da neutralidade seria política? Quais foram os critérios adotados pelos editores para definir o que é confiável ou não? Se se valem da transparência e neutralidade como valores infindáveis da plataforma, e prezam pela participação e colaboração como práticas necessárias para o seu funcionamento democrático, onde estão os critérios acordados para definir qual jornalismo é digno de confiança? Sem a publicização dos critérios e dos debates que levaram a plataforma adotar tal medida, toma-se o risco de virar uma prática persecutória contra determinados atores institucionais da sociedade civil, como no caso de uma empresa jornalística reconhecida nacional e internacionalmente, como o Brasil 247.
Quais mecanismos estão sendo aplicados para impedir que a Wikipédia se torne um campo fértil para destruição de reputações e como campo para disputas políticas e econômicas? É possível que algum dos seus editores utilize a plataforma para promover um balcão de negócios, com interesses próprios? As decisões entre os editores são coletivas e consensuadas? O que tem sido feito para evitar esse tipo de conduta de instrumentalização política dos espaços de edição da plataforma?
Neste processo de instrumentalização da neutralidade, transforma-se todo um projeto democrático, participativo e colaborativo de mais de 20 anos, como a Wikipédia, em campo de ação e disputas políticas, que contrariam o próprio princípio da plataforma com ações autoritárias e restritivas, partir do momento em que a Wikipédia define o que é digno de confiança e o que é passível de suspeita sem qualquer apresentação de argumentos – ou sequer indicadores e evidências que sustentem tal afirmação – e sem permitir que a própria empresa de jornalismo faça a defesa de seu verbete dentro da plataforma, tal ação passa a representar uma ameaça persecutória grave, sinal dos tempos sombrios em que as democracias ocidentais estão vivendo. Politizar a Wikipédia, sequestrando seus princípios basilares, suscita ainda mais o debate sobre as responsabilidades sobre a comunicação. E traz à tona a importância de debater sistemas baseados em autoridades epistêmicas já muito desgastadas, mas que ainda assim buscam caminhos para sobreviver nas disputas de narrativas em outras plataformas que até então eram alternativas razoáveis em uma reconfiguração da forma como podemos nos comunicar e produzir conhecimento, como a Wikipédia. Traz ainda um risco à própria plataforma, pois começa a se levantar dúvidas sobre os interesses entranhados entre a cultura de edição em diferentes setores da sociedade e, por fim, coloca em risco a própria democracia ao legitimar práticas persecutórias infundadas sob uma bandeira perigosa de combate à desinformação.